Sobre doação de orgãos - Pela última vez: Me desculpe Mamãe!
Foi bem bonito o enterro de mamãe. Mais de duzentas pessoas,
num cemitério no estilo americano: Túmulos cobertos por placas num imenso
gramado. Teve celebração religiosa na bela capela ecumênica, uma sala reservada
com sofás, petiscos e telefone, até teve ônibus para levar os que não tinham
como se locomover até a cidade de Itapecerica da Serra. Eu, na verdade, queria
que fosse diferente.
Do blog: http://psicomirianmarques.blogspot.com/ |
Desde a hora em que peguei mamãe nos braços para socorrê-la
até a hora em que terminei de ajeitar o caixão na sala de velório – e seis dias
se passaram- eu estava ocupado demais tentando cuidar do que era preciso ser
feito e pouco tempo tive para chorar a perda.
Para poder chorar tudo o que estava na garganta, em forma de
nó, eu precisei esperar que a cerimonia terminasse, a pequena multidão se
esvaísse e então pude sentar só a beira de seu túmulo e desabar em lagrimas até
ser amparado por dois ombros amigos; desconfio que chorasse por horas, se não
fosse retirado dali pelos “retardatários”. Para mim a cerimonia deveria contar
apenas com a família e um ou outro amigo muito próximo. Mas, não pela única
vez, eu fui voto vencido.
Nos dias em que acompanhei mamãe no hospital, era sempre o
primeiro a chegar, saber as novidades e passar – da melhor forma possível – aos
demais. Por ter trabalhado num grande hospital e ter acompanhado de perto o
drama de muitas pessoas na UTI, sabia que a situação era extremamente delicada,
mas procurei passar tranquilidade à família, na verdade por um egoísmo: A
grande esperança que eles apresentavam aumentava a minha pouca esperança. Isto
de amortecer a pancada antes que atingisse outros acabou se revelando muito
pesado mais a frente.
Quando mamãe teve a morte encefálica diagnosticada, por uma
destas ironias do destino, uma antiga amiga tinha chegado cedo e eu acabei
esperando por ela na porta do hospital por tempo suficiente para que
conversasse com o médico. Ela me recebeu oferecendo conforto e me ajudou a
segurar o baque.
Ao falar com o plantonista fui encaminhado para a
coordenação, onde o médico foi sucinto ao afirmar que clinicamente mamãe estava
morta.
Foi muito duro falar para minha irmã e muito doído falar
para papai. Nem eu sei de onde tirei a estrutura necessária para executar tão árdua
tarefa.
Mamãe era muito querida e já no hospital um cortejo
acompanhava o desenrolar dos fatos. Mais de uma vez eu fiquei contrariado ao
saber – na visita da tarde- que “alguém da família” já havia subido, quando na verdade a família (eu e papai ou um dos demais filhos) acabava de chegar.
Na primeira “visita” após o diagnostico fúnebre, alguns
religiosos subiram junto com minha irmã e na UTI é praxe não se contar a
verdade a todos os visitantes. Como nenhum médico quer gente dando chilique ao
lado de pacientes com situação tão delicada, geralmente costumam ser o mais
suave possível.
Isto bastou para que logo se arranjasse um “culto” em prol
da intervenção divina. Fiquei muito bravo e passei como sendo o homem de pouca
fé. Minha brabeza não foi pelo culto em si, mas pelo fato de colocarem
esperança novamente no coração de papai. Deus seria ironicamente cruel se
deixasse as coisas chegarem a tal ponto para realizar um milagre.
Mamãe trocava noites de sono por orações em prol dos
desgraçados (no sentido de gente que perdeu até a esperança) e achei que o
caminho natural seria doar todos os órgãos possíveis. Como mamãe tinha hábitos saudáveis
e uma saúde de ferro, creio que poderia ajudar, no pouco, uma dúzia de pessoas. Infelizmente, minhas
irmãs não estavam muito certas disto.
Após uma longa reunião entre os homens da família, tios e
cunhados inclusos, resolvi tentar pela ultima vez convencer minhas irmãs (que
conversavam com a equipe de coleta) do belo gesto que seria a doação, já que os
médicos – por ética – não podem ser muito persuasivos em seus argumentos.
Entre a cristandade do ato e outras coisas, lembrei que o enterro
ficaria mais em conta, já que doariam o caixão, as flores e outras “benesses”.
Minhas irmãs estavam praticamente convencidas até a consulta
às irmãs de mamãe. A que estava no hospital entrou em estado de choque por
entender que estávamos matando mamãe com este gesto. A outra achou um absurdo.
O difícil de digerir é que ambas são cristãs.
Mais uma vez voto vencido julguei que o caixão de mamãe
pesaria mais de uma tonelada já que carregava para os vermes os órgãos e
tecidos que seriam a esperança das gentes por quem mamãe orava nas madrugadas:
queimados beneficiados por peles, cegos por córneas, etc...
Na verdade ela própria estaria realizando o milagre que
tanto pedia a Deus!
Pessoas que participaram do processo todo vieram oferecer
ajuda financeira por julgar que eu estava trocando o folego (e a esperança) de
vida de mamãe por um caixão e um punhado de flores. Minha irmã indignada
esboçou não aceitar. Exortei que aceitasse, guardasse e depois de um tempo
devolvesse as mesmas cédulas, com um agradecimento enorme pela ajuda prestada
em hora tão difícil.
Graças a Deus temos uma situação financeira um pouco acima
dos mais pobres (e muito longe dos ricos, é verdade!) tanto que me exonerei de
um cargo publico em memória de mamãe (isto é outra história que contarei em
breve) e em defesa de minha dignidade profissional.
Ninguém neste mundo sofre mais que eu a severa perda – até pode
sofrer igual – e juro que venderia minha casa (até a alma) para salvar mamãe,
muito embora não concorde com o enterro pomposo e popular; fiz tudo o que pude
por ela em vida e isto me conforta um bocado.
O que me deixa triste é saber que a doação de órgãos é
tratada desta forma no país por absoluta falta de informação. Muito duro
aceitar que o que minhas tias fizeram foi um ato de amor e de esperança,
absolutamente por não possuírem informação suficiente para entender que num
hospital o objetivo é sempre salvar vidas e isto nunca se dá em troca de outra
vida.
Fico eu como o “de pouca fé” e o “mercenário” por que o povo
brasileiro não obtêm acesso às mais básicas das informações. Doar orgãos equivale a produzir uma vida.
Pela última vez: Me desculpe mamãe!
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