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Hipocritossauro - o ancestral do ativista da moralidade nas redes sociais.

Tempos atrás um programa humorístico que passava na Band resolveu testar o discurso do povo brasileiro fazendo uma série de pegadinhas para experimentar na prática o que se diz. Na fase de entrevista o número de pessoas boas, honestas e adeptas dos bons costumes beirava os 100%, mas quando o teste consistia em situações reais a maioria escorregava.

As redes sociais hoje refletem muito dos testes de honestidade do programa. por trás da tela todo mundo é gente de dar orgulho e inveja, seres humanos exemplares que não toleram quaisquer desvios de conduta, seja lá de quem for. Talvez se o nazareno andasse por aqui, repetisse muito a famosa frase que salvou a mulher adultera do apedrejamento: "Aquele que não tiver pecado que atire a primeira pedra".

Entramos no cristianismo porque a situação atual de nossa sociedade virtual lembra muito uma outra fase negra das relações humanas promovida pela santa madre igreja, a chamada santa inquisição. Num tempo em que igreja e estado se confundiam, clérigos e apaniguados apontavam seus dedos para as pessoas que se desviavam da conduta moral exigida e lhes punia com castigos físicos, sexuais, financeiros e até morte pelos meios mais cruéis que se possa imaginar, como queimar na fogueira ou pendurar por cordas de cabeça para baixo em pontes para morrer lentamente.

Quando encontravam um desvio alheio, por menor que fosse, julgavam e condenavam, quando não encontravam mas a pessoa era "non grata" acusavam de bruxaria. O mundo seria um lugar melhor hoje se o discurso da igreja fosse sincero e verdadeiro, mas os mesmos promotores da moral que julgavam e condenavam seletivamente ou, por vezes, quase que aleatoriamente cometiam  as piores barbaridades que o ser humano já foi capaz de engendrar. E o mais curioso é que o cara em cujo nome cometiam tudo isto deixou um discurso bem diverso, de paz, amor e perdão, inclusive exortando seus seguidores a não julgar.

As redes sociais no Brasil tem se prestado cada vez mais a disseminar o discurso de ódio seletivo distribuído aleatoriamente. Parece contraditório mas não é: É seletivo porque não se aplica a casos similares e piores de acordo com os interesses do inquisidor e aleatório porque atinge a qualquer um que se deixe fisgar, destruindo reputações e muitas vezes vidas.

O mais preocupante de tudo isto é que a imprensa tem vestido a camisa e impulsionado os resultados nefastos da santa inquisição virtual, a trinca hipocrisia-rede social -imprensa é implacável e imbatível.

Nos anos 90, impulsionada pela fofoca, a imprensa sozinha devastou uma família, uma empresa e muitas vidas no caso que ficou conhecido como "Escola base", mas o que deveria expurgar os erros da comunicação não serviu de lição e é curioso ver como a mesma imprensa que luta contra as chamadas "fake news" fomenta o linchamento virtual sem provas e muito pior: sem sequer motivos sólidos e robustos.

Alguns exemplos recentes do quão perigoso é o comportamento de manada a fim de apontar e corrigir as falhas alheias baseado tão somente em achismos e suposições:

No litoral de SP uma dona de casa foi literalmente linchada até a morte depois que ganhou repercussão nas redes sociais a suspeita infundada de crime, quando uma página pretensamente noticiosa divulgou um retrato falado de uma suposta raptora de crianças para magia negra.

No litoral do RJ vendedores ambulantes de livros foram cercados e agredidos pela multidão após uma foto do carro que ocupavam viralizar nas redes sociais sob acusação de rapto de crianças para tráfico de órgãos.

O prestigioso jornalista William Waack foi sumariamente demitido da rede Globo depois de um vídeo onde fazia uma piada de péssimo gosto em off vazar indevidamente.

Um grupo de brasileiros que foi filmado em atitude nada louvável durante a copa do mundo está tendo suas vidas devastadas não só nas redes sociais, mas alguns perderam o emprego e um policial de Santa Catarina corre até risco de prisão e demissão por conta da brincadeira nada lisonjeira em que foram flagrados.

Não se trata aqui de querer tornar aceitáveis atitudes erradas ou criminosas ou de se pretender cercear o direito de cada um se indignar e se manifestar na internet sobre o que lhe cause incomodo, apenas alertamos que vivemos numa democracia com ordenamento jurídico a plenos pulmões e seria salutar fazer questionamentos quanto ao alcance do que se vai dar publicidade e a justiça do resultado disto, levando em consideração quais as chances de você ou alguém muito próximo cometer algo pretensamente inocente que enseje igual tratamento por terceiros. É preciso separar inequivocamente o que é crime, o que é  reprovável moral ou socialmente, o que é politicamente incorreto, o que é inconveniente, o que é afrontoso, o que é discriminatório e aí se exigir punição compatível, porque afinal de contas ainda somos todos humanos, passiveis das coisas mais sujas, equivocadas, cruéis e inconvenientes e os conselhos de Jesus não andam tão em voga até hoje por mero acaso. Antes de tirar a trave do olho do teu irmão, procura tirar a do teu.

Uma sociedade avançada e moderna cobra sim seus indivíduos, protesta e se manifesta sim, mas faz isto com a alma leve de quem superou a hipocrisia.




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